domingo, 16 de novembro de 2025

Trilhos, Sanatórios e o Tempo que Passa em Campos do Somos Campos do Jordão

Campos do Jordão tem um cheiro particular. Não é apenas o aroma de pinho ou a friagem da Mantiqueira. É o cheiro metálico e levemente oleoso dos trilhos de uma velha dama de ferro, a Estrada de Ferro Campos do Jordão (EFCJ). Em novembro de 2025, esta linha férrea centenária — 111 anos nas costas — não carrega apenas turistas; ela transporta fatias de história, uma história que começou com a saúde e se metamorfoseou em puro deleite turístico. É preciso fechar os olhos e imaginar: 1914. Campos do Jordão não era a Suíça brasileira das fotos de hoje, mas um refúgio isolado, uma esperança. Seu clima, dizia-se, era o melhor remédio para a tuberculose. A ferrovia não era um passeio, mas sim a linha da vida que ligava Pindamonhangaba aos sanatórios no alto da serra. Aqueles vagões originais eram veículos de fé e necessidade. Pacientes, cansados e esperançosos, faziam uma viagem que era, por si só, uma prova de engenharia. Pense bem: vencer um trecho de 11% de inclinação em livre aderência é um feito audacioso, quase poético, de como a vontade humana pode domar a natureza. E culminar no Ponto Culminante Ferroviário do Brasil, a 1.743 metros de altitude, bem no Alto do Lageado, era atingir, literalmente, o ápice da jornada. O pioneirismo veio rápido: em 1924, o apito a vapor deu lugar ao zunido da eletricidade, cortesia da inglesa English Electric. Mas a medicina avança. Os sanatórios fecharam as portas e o mundo esqueceu a tuberculose como um mal incurável. O que fazer com uma estrada de ferro que perdeu sua função primordial? A EFCJ, como as montanhas que a cercam, soube se reinventar. A partir dos anos 70, a velha senhora vestiu uma fantasia de turista. Ela instalou o primeiro teleférico do país e começou a trocar a urgência da cura pelo vagar cênico. Hoje, os bondes turísticos ressoam na cidade, e o trem da serra é uma atração que nos convida a desacelerar, a beber a paisagem em doses lentas. O futuro, porém, é sempre um bilhete de primeira classe. Com os 111 anos, vem o debate: a modernização, a concessão à iniciativa privada. O Governo de São Paulo discute entregar os trilhos a mãos que prometem reativar e aprimorar o trecho completo: Pinda, Santo Antônio do Pinhal e Campos do Jordão. A esperança é que, mesmo sob nova gestão, a ferrovia mantenha seu patrimônio, sua alma e sua história, enquanto impulsiona a economia regional. E toda grande história tem um nome. Esta tem o sotaque grave e a teimosia escocesa de Robert John Reid. Este engenheiro, formado em Oxford, não só demarcou a Fazenda Natal (que virou a cidade), como usou seu pagamento em terras para fundar e urbanizar a Vila Abernéssia — uma homenagem a suas cidades natais, Aberdeen e Inverness. Reid é o fantasma gentil que caminha ao lado dos trilhos. Foi ele quem doou o terreno para a primeira estação e lutou com unhas e dentes, ao lado de Emílio Ribas, pela construção e, crucialmente, contra a desativação da EFCJ. Ele sabia, instintivamente, que a ferrovia não era apenas sobre transportar doentes, mas sobre transportar o futuro da região. Hoje, sentados em um bonde elétrico, ouvindo o leve ranger dos eixos, somos herdeiros da visão de Reid. A EFCJ é um portal: ao mesmo tempo em que nos leva ao turismo do presente, nos devolve ao passado, ao tempo em que o apito do trem era o som da esperança a subir a serra.

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