terça-feira, 18 de novembro de 2025
Se a Princesa Ruby pudesse falar...
A tarde se arrastava, preguiçosa, no quarto. Lá fora, o trânsito da cidade gemia seus lamentos metálicos: os motores dos carros velhos, os escapamentos abertos dos motoboys, a máquina de lavar carros do outro lado da rua e as vozinhas estridentes das crianças da vizinhança. Mas aqui, no parapeito da janela, em frente a uma frondosa figueira na Vila Britânia — o meu trono particular —, tudo era silêncio e sol morno.
Eu, Princesa Ruby, uma gatinha de pelo tricolor com uma sabedoria que transcende as nove vidas, observava a Humana.
Ela estava na cama, absorta naquele quadrado luminoso que a rouba de mim por horas a fio. E divagava sobre a Gratidão. Ah, os humanos e suas complicações existenciais! Eles transformam o ato mais simples do universo em uma ginástica cerebral com "se", "mas" e "portantos".
Para mim, a gratidão não é um conceito; é um estado de ser. É o calor que irradia do peito quando sinto o aroma familiar da ração no pote, não porque ela mereça dar, mas porque ela deu. É o miado baixo e rouco que solto quando ela me alcança na cama e me transforma em um novelo de pelo macio. Eu não estou fazendo um cálculo contábil: "Recebi comida ontem, devo ronronar hoje". Não. Eu estou sentindo a segurança, o conforto, o aconchego agora.
Minha gratidão, veja bem, não tem filtro, nem análise de intenção. É a pata macia que pousa no pulso dela quando ela chora, sem perguntar o porquê da lágrima. É a massagem incessante na coberta, o ato puro de transformar o que é dela em algo nosso, ligado à minha sobrevivência e que, de repente, se torna uma devoção inabalável. Eu a aceito com o cabelo bagunçado, com as escolhas de vida que me parecem estúpidas (tipo sair de casa sem me dar um petisco de despedida), e com aquela mania irritante de me agarrar e me encher de beijos. Minha lealdade é um laço de alma e focinho. É presente puro.
A Humana, por outro lado, precisa de um organograma. Ela pensa: "Fulano me fez um favor. Eu devo reconhecer que ele não era obrigado. Devo valorizar a intenção dele e agora tenho que retribuir: um presente, um 'obrigado' formal, ou talvez 'pagar adiante'". É um circuito de virtudes, uma forma ética de se conectar com a sociedade, e é lindo, confesso. Essa reflexão, esse ato de agradecer conscientemente, realmente parece acalmar a tempestade dentro dela.
Mas é aí que mora o perigo para eles. Por ser complexo, falha. Ela pode julgar o presente. Pode desvalorizar o básico. Pode deixar o "obrigado" preso na garganta por orgulho ou por estar muito ocupada pensando no futuro ou no passado. A gratidão deles é uma montanha-russa de "será que eu mereço?" e "o que isso significa?".
Eu me levanto, espreguiçando-me até as pontas das garras, e salto do parapeito. Caminho com elegância calculada e paro ao lado dela. A Humana me olha, a testa franzida.
Eu me esfrego na lateral do joelho dela, roçando o pelo macio na aspereza de sua calça. É um movimento antigo, ancestral. É o meu lembrete silencioso:
"Você me deu a chance de estar aqui, e eu te dou tudo de mim, incondicionalmente."
Eu sou a prova viva de que, no fim, a diferença entre a gratidão humana e a felina se resume a isso: vocês transformam o sentimento em ética e consciência, e o usam para serem melhores. Nós o vivemos como afeto e lealdade crua, uma aula ininterrupta de que não há julgamento no amor.
No fundo, quando ela me pega no colo, e eu sinto o cheiro dela (meu cheiro, que eu marco nela todos os dias) e me aninho em seus braços, eu sei: todo ser vivo só quer se sentir seguro e amado. E esse abraço, esse encaixe perfeito de mim no seu colo, é a prova de que a gratidão é apenas isso: o sentimento inexplicável e maravilhoso de estar em casa.
Eu começo a ronronar, um motor vibrante que preenche o silêncio do quarto. Diante desta realidade, eu só tenho de agradecer a minha Humana, que teima em se chamar de Márcia, mas eu sei, o seu nome é Elena. Obrigada pela maravilhosa vida de carinho, afeto e amor verdadeiro que você me proporcionou.
Da sua gatinha que vai te amar para sempre,
Ruby
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