quarta-feira, 13 de agosto de 2025

A Crônica da Mantiqueira e a Marca do Destino

A Mantiqueira é uma senhora velha e paciente, e o tempo, em seus flancos, sempre correu com a preguiça das névoas densas que se arrastam pelos picos. Se hoje o asfalto pulsa com o frenesi turístico da Vila Britânia, houve um tempo em que Campos do Jordão era apenas a Fazenda Natal: um vasto silêncio intocado onde o único código era a altitude e o futuro da cidade não passava de uma miragem congelada no ar fino. Este platô altaneiro, é bom que se diga, não foi descoberto. Ele foi, à maneira de tudo o que é grandioso e inevitável, lentamente desvendado. Lá pelo alvorecer do século XVIII, a geada em seus campos gelados já tinha a familiaridade dos passos dos Bandeirantes. Homens duros, como Martim Correa de Sá e o lendário Gaspar Vaz da Cunha, o “Oyaguara”, até cruzaram por aqui. Mas não se detiveram. A terra era bela, sim, mas era apenas um rude trampolim, uma ponte necessária a caminho do ouro de Minas. Por séculos, esta promessa da Mantiqueira permaneceu em um sono profundo. Era uma humildade esquecida que, mesmo quando o século XX já espreitava, mal arranhava a vastidão da natureza, resumida em dois núcleos tímidos: a Vila Nova e a singela Vila Velha, que hoje chamamos Jaguaribe. Mas a ambição humana, amigos, é mais teimosa e inexorável que a própria História. Ela não suporta o indefinido, o "pró-indivisa". A Fazenda Natal, aquele gigante adormecido, era um barril de pólvora partilhado por centenas de condôminos, e era óbvio que a divisão viria. E foi o Dr. Domingos José Nogueira Jaguaribe quem, com a ponta de uma pena, ativou o gatilho do destino. Em 1896, sua petição inicial pôs em marcha a pesada e fria máquina da lei. A notícia do fatiamento da Mantiqueira foi para o Diário Oficial, seca e formal. O drama cartorial, iniciado no pacato Foro de São Bento do Sapucaí, não tardou a mergulhar na tragédia. Demarcar a terra era uma tarefa de Hércules. Não bastavam as réguas e os teodolitos; era preciso coragem. O primeiro agrimensor nomeado, o respeitável Dr. José Magalhães, encontrou um fim brutal que transformou a papelada em manchete. Era o finzinho do século, 28 de dezembro de 1899. O engenheiro tombou, atingido por um tiro de espingarda calibre 24. O autor? Um dos condôminos, o temido João Rodrigues da Silva, mais conhecido como João Maquinista. A contenda, nascida de uma mesquinha briga por um desvio de água, deixou um rastro de sangue onde hoje as ruas Tadeu Rangel Pestana e João Rodrigues Pinheiro se cruzam. O crime, claro, ecoou muito além dos vales. Tornou-se um escândalo amplamente noticiado na Capital, atirando a violência rústica da serra para o palco da opinião pública. O pavor era tão palpável que os sucessores nomeados, intimidados pelo martírio do colega, simplesmente renunciaram à empreitada. A Ação de Demarcação mergulhou num sono forçado. A terra ferida exigia seu tempo de luto. A roda da história só voltou a girar, pesada e lenta, em 1907. E vejam que ironia: foi impulsionada por capital estrangeiro. A Casa Nathan e Cia. vendeu seus direitos à Societé Financière Franco-Brésilienne, de Paris. A Companhia Francesa não tinha medo, apenas negócios. E achou o homem que se atreveria a enfrentar o fantasma do Maquinista: o Dr. Robert John Reid, um escocês contratado a peso de ouro para a medição final. Era a chegada solene do benfeitor forasteiro, um destino costurado por um assassinato, desistências, e o fluxo frio do capital internacional. Sua jornada seguiu o rito da época: lombo de cavalo, isolamento. Reid estabeleceu seu quartel-general na simplicidade da Vila Nova e mergulhou no coração da terra, transformando o mapa em realidade. Meses se passaram no compasso minucioso da topografia. Cada medição era um passo para encerrar a velha querela. Em 14 de novembro de 1907, ele apresentou o rigoroso “Memorial Descritivo de Medição do perímetro da Fazenda Natal”—a certidão de nascimento formal de Campos do Jordão. O martelo da Justiça, lento e pesado, só foi batido em 1908. A vasta Fazenda Natal foi retalhada em 107 quinhões, fatiada sob a égide da lei. Mas a história da terra, sabemos, é feita de disputas tão antigas quanto as montanhas. O processo, inchado em seus 12 volumes, gerou uma cascata de recursos. O embate migrou para as esferas superiores, e a espera paciente se estendeu por anos. Somente em 12 de junho de 1913, a Suprema Corte do país, com sua voz final, ratificou a Sentença. Só então, após anos de labuta, litígio, e aquela marca indelével de sangue na Mantiqueira, a demarcação de Robert John Reid alcançou a imutabilidade da coisa julgada. O sonho da quimera suspensa no ar gélido ganhava, enfim, fronteiras de papel e lei, pavimentando o caminho para a estância que Campos do Jordão viria a ser. E é por isso, talvez, que o vento da serra ainda soa como um sussurro de histórias... e um pequeno lamento de espingarda.